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A Estátua e a Pedra (e o barro e o bronze)


Saramago divide o percurso dos seus romances em duas partes – a primeira, até “O evangelho segundo Jesus Cristo”, associada à figura da “estátua”, que outra coisa não é que a “superfície da pedra”, e a segunda, a partir de “Ensaio sobre a Cegueira”, a da “pedra”, que pretendeu entrar “no mais profundo de nós mesmos”, numa “tentativa de perguntar o quê e quem somos”.

Existem basicamente duas maneiras de se fazer uma estátua. Por remoção ou por acréscimo. Na primeira, se parte do material, que pode ser madeira ou pedra e se retira tudo o que está “a mais”, para assim se descobrir a forma contida naquele material. É como se tivesse um corpo embaixo d’água dentro de uma banheira, ou dentro de um grande cubo de gelo. Retira-se a água ou derrete-se o gelo e o corpo aparece com todos os seus detalhes. Diz-se que Michelangelo olhava um bloco de pedra e já “via” a escultura que ali estava contida. Pouco a pouco ele foi sintetizando seu estilo e retirando cada vez menos pedra, como se a pedra e a estátua fossem uma só coisa. Por isso ele parece ter dito uma vez que a estátua fica boa depois de rolar uma montanha e perder no percurso tudo o que estava a mais, todo acessório ou “enfeite” desnecessário à sua essência. Bernini que era outro gênio do mármore não dividia essa opinião, e criava suas estátuas com inúmeros detalhes barrocos. Séculos depois Brancusi, outro gênio da pedra, parece seguir os preceitos de Michelangelo e retirar da pedra o mínimo possível, quando esculpe um rosto ou um pássaro ou um beijo.

Na outra maneira de se fazer uma estátua, por acréscimo, o processo é oposto ao da pedra. É o que ocorre quando se faz uma estátua em barro (argila). Parte-se do nada e acrescenta-se pouco a pouco o barro, buscando dar a forma que se quer, a forma que estaria contida na pedra e que nesse caso está expandida no “Éter”. Em uma maneira se descobre, na outra se cobre. Da estátua em barro, material perecível, é feita uma fôrma que recebe a liga incandescente e renasce no bronze.

Que seja por remoção ou por acréscimo, deve-se sempre procurar encontrar a alma. Para Saramago, a essência, “o mais profundo de nós mesmos”. É difícil ou impossível de se saber qual a relação real entre forma e matéria, entre corpo e espírito. O espirito dá forma ao corpo? A aparência é um mero acaso? O fato é que o corpo é a morada do espírito e que sem o corpo, o espírito não poderia se manifestar, assim como sem a tela, a pintura não passa de uma ideia ou sem a pedra ou o barro, a estátua não pode existir.

Fazer uma estátua de Saramago é de certa forma fazer o percurso contrário ao que ele próprio diz ter feito. É partir da pedra, ou mais facilmente do barro, à estátua. Do material à forma, do mais profundo de nós mesmos à superfície, do corpo ao espírito. É uma tarefa difícil, se não impossível, mas me lancei assim mesmo, com certa humildade, sabendo que a perfeição não é humana, e que mesmo imperfeita, imóvel, metálica, a forma oferece alguma morada ao espírito, e quem sabe, vendo o espírito a representação de sua antiga forma, ele não se anima a entrar de vez em quando e assim nos inspirar com sua presença a buscar a profundidade, a vencer o tempo, a ausência e a morte?

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